terça-feira, agosto 04, 2009

O Lobo e a Lua


    O Lobo nunca olhava para a Lua, não precisava. Sentia uma comichão leve no focinho quando estava Lua cheia, e sabia que era hora de uivar aos espíritos do Vento e da Caça. Por isso nunca precisava de observar o céu... E quando erguia a cabeça para iniciar a sua oração canina, encerrava sempre os olhos, porque só assim conseguia gritar até ao mais alto agudo, sentido a vibração da sua voz em cada pêlo do seu corpo.
    Mas um dia, num momento de desconcentração, o Lobo ergueu a cabeça de olhos bem abertos e a luz lunar derramou-se na sua visão, como uma cascata de prata líquida. Durante minutos observou aquela visão desconhecida, num misto de espanto e adoração. Nunca antes, nas suas noites de oração, se tinha apercebido da beleza da Noite banhada de luar... E ali ficou até ao nascer do Sol, extasiado com a forma, brilho e graça da Lua, enquanto ao longe ouvia os outros lobos completarem o seu ritual, uivando alto na esperança de que os espíritos lhes abençoassem a caçada.
    Com o passar do tempo a Lua completou outro ciclo: encolheu-se até à Lua Nova, e alimentou-se de luz fresca para se tornar de novo Cheia. Mais uma vez, os lobos uniram-se em uivos distantes, latindo em uníssono a oração dos seus instintos. Mas mais uma vez faltou o uivo agudo do Lobo, e o Vento soprou furioso, agitando as folhagens que em sussurros perversos espalharam pela floresta a notícia do lobo que deixara de uivar...
    No ciclo seguinte, as noites tornaram-se mais frias e agitadas, sempre marcadas pela presença enlouquecida do Vento. Os seus sopros violentos atiravam passarinhos para fora dos ninhos, arrastavam coelhos e veados pelo chão, vergavam árvores anciãs... Pouco a pouco, os animais foram fugindo da floresta, longe daquela flora desfigurada que já não constituía um abrigo... E os lobos rosnavam baixinho enquanto dormiam, sonhando com as presas refugiadas no território de outras alcateias.
    Uma noite antes da Lua Cheia seguinte, o Vento soprou mais forte e determinado, arrancando do chão as raízes pesadas dos Sobreiros que sinalizavam o refúgio dos lobos. Os seus silvos assemelhavam-se ao uivar louco de um lobo velho, rebentando o peito no seu latido, como que a convocar a alcateia. E assim, pouco a pouco, os lobos foram saindo do seu refúgio, uivando tristemente para uma Lua precoce, quase cheia... E no meio do seu choro cantaram o nome do Lobo, aquele que deixara de adorar o Vento e a Caça, que se calara e condenara toda a floresta ao abandono.
    Pela primeira vez naquele ciclo, o Lobo distraiu-se na contemplação Lunar, e ouviu próximos os lamentos da sua raça. E nesse instante relembrou o seu instinto, voltou a sentir aquela comichão no focinho, aquela urgência de soltar na Noite o seu grito agudo. E uivou mais alto e mais claro do que nunca, deixando o seu latido cortar o céu, e atravessar a floresta e as montanhas até chegar aos ouvidos dos animais emigrados...
    O Vento por fim abrandou, e os latidos dos lobos apagaram-se com ele... E o Lobo ganiu baixinho, num lamento de tristeza e culpa pelo destino dos seus irmãos. Caminhou lentamente pela floresta, magro e cansado, e olhou uma última vez a Lua, pela qual se apaixonou assim que a viu, ao ignorar o seu instinto. Ali caiu e ali morreu...

    Na noite seguinte o Vento soprou baixinho, acompanhando o uivar fúnebre da alcateia...


    Para ti, Sofia, porque sei como gostas de lobos...



    Texto por Susana Castilho e imagem por Marco Leal

      8 comentários:

      Sofia disse...

      Agora puseste-me a chorar. O conto é lindíssimo e merece uma publicação na revista do Grupo Lobo. Parece quase um conto índio, de tão belo e sábio.
      Beijinhos.

      Daniel disse...

      Não acho que devas escrever só isto,mas escreveres um livro de fábulas não seria mal pensado.Está muito bom,de facto.(e eu também gosto de lobos!)

      Susana disse...

      Obrigado Marco, pela magnífica ilustração! ;)

      Marco Leal... disse...

      ora essa, de nada, como já te disse, o material que serviu de inspiração é muito bom. ;)

      Ana Jones disse...

      =)
      fico feliz. muito feliz por ler e ver este trabalho.
      parabéns a dois dos meus amores!

      Gonçalo Inglês disse...

      Sem palavras...

      Ciss@ disse...

      Eu sou apaixonada por contos de sol e lua lobos e fadas...essa sua narraçao ficou linda...Parabéns

      Rodrigo Barreto disse...

      gostei muito do texto, principalmente da variedade de palavras que usa na descrição. Tens um léxico abrangente, tá de parabéns.