Mas um dia, num momento de desconcentração, o Lobo ergueu a cabeça de olhos bem abertos e a luz lunar derramou-se na sua visão, como uma cascata de prata líquida. Durante minutos observou aquela visão desconhecida, num misto de espanto e adoração. Nunca antes, nas suas noites de oração, se tinha apercebido da beleza da Noite banhada de luar... E ali ficou até ao nascer do Sol, extasiado com a forma, brilho e graça da Lua, enquanto ao longe ouvia os outros lobos completarem o seu ritual, uivando alto na esperança de que os espíritos lhes abençoassem a caçada.
Com o passar do tempo a Lua completou outro ciclo: encolheu-se até à Lua Nova, e alimentou-se de luz fresca para se tornar de novo Cheia. Mais uma vez, os lobos uniram-se em uivos distantes, latindo em uníssono a oração dos seus instintos. Mas mais uma vez faltou o uivo agudo do Lobo, e o Vento soprou furioso, agitando as folhagens que em sussurros perversos espalharam pela floresta a notícia do lobo que deixara de uivar...
No ciclo seguinte, as noites tornaram-se mais frias e agitadas, sempre marcadas pela presença enlouquecida do Vento. Os seus sopros violentos atiravam passarinhos para fora dos ninhos, arrastavam coelhos e veados pelo chão, vergavam árvores anciãs... Pouco a pouco, os animais foram fugindo da floresta, longe daquela flora desfigurada que já não constituía um abrigo... E os lobos rosnavam baixinho enquanto dormiam, sonhando com as presas refugiadas no território de outras alcateias.
Uma noite antes da Lua Cheia seguinte, o Vento soprou mais forte e determinado, arrancando do chão as raízes pesadas dos Sobreiros que sinalizavam o refúgio dos lobos. Os seus silvos assemelhavam-se ao uivar louco de um lobo velho, rebentando o peito no seu latido, como que a convocar a alcateia. E assim, pouco a pouco, os lobos foram saindo do seu refúgio, uivando tristemente para uma Lua precoce, quase cheia... E no meio do seu choro cantaram o nome do Lobo, aquele que deixara de adorar o Vento e a Caça, que se calara e condenara toda a floresta ao abandono.
Pela primeira vez naquele ciclo, o Lobo distraiu-se na contemplação Lunar, e ouviu próximos os lamentos da sua raça. E nesse instante relembrou o seu instinto, voltou a sentir aquela comichão no focinho, aquela urgência de soltar na Noite o seu grito agudo. E uivou mais alto e mais claro do que nunca, deixando o seu latido cortar o céu, e atravessar a floresta e as montanhas até chegar aos ouvidos dos animais emigrados...
O Vento por fim abrandou, e os latidos dos lobos apagaram-se com ele... E o Lobo ganiu baixinho, num lamento de tristeza e culpa pelo destino dos seus irmãos. Caminhou lentamente pela floresta, magro e cansado, e olhou uma última vez a Lua, pela qual se apaixonou assim que a viu, ao ignorar o seu instinto. Ali caiu e ali morreu...
Na noite seguinte o Vento soprou baixinho, acompanhando o uivar fúnebre da alcateia...
Para ti, Sofia, porque sei como gostas de lobos...
Texto por Susana Castilho e imagem por Marco Leal
8 comentários:
Agora puseste-me a chorar. O conto é lindíssimo e merece uma publicação na revista do Grupo Lobo. Parece quase um conto índio, de tão belo e sábio.
Beijinhos.
Não acho que devas escrever só isto,mas escreveres um livro de fábulas não seria mal pensado.Está muito bom,de facto.(e eu também gosto de lobos!)
Obrigado Marco, pela magnífica ilustração! ;)
ora essa, de nada, como já te disse, o material que serviu de inspiração é muito bom. ;)
=)
fico feliz. muito feliz por ler e ver este trabalho.
parabéns a dois dos meus amores!
Sem palavras...
Eu sou apaixonada por contos de sol e lua lobos e fadas...essa sua narraçao ficou linda...Parabéns
gostei muito do texto, principalmente da variedade de palavras que usa na descrição. Tens um léxico abrangente, tá de parabéns.
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