sábado, agosto 26, 2006

Amor próprio

Perante a evidência de outra noite de insónia ela decidiu ficar acordada. Refugiou-se numa sala vazia e silenciosa, escutando a sua própria respiração. "Então é este o som..." murmurou ela, enquanto constatava o óbvio: já há muito que não parava para se ouvir. Já não se lembrava do som da sua respiração, nem da última vez em que a tinha escutado com atenção.
E por momentos congelou, aterrada com a possibilidade de se estar a esquecer de ela própria. Escutou novamente a sua respiração, agora um pouco mais acelerada, procurando gravar cada ruído na sua memória auditiva. Aos tropeções regressou ao quarto, desapertando o cinto e despindo a blusa pelo caminho. Atirou a roupa para cima da cama e pôs-se em frente ao seu espelho desencantado, onde podia ver cada defeito do seu corpo. Estudou as suas curvas, rodando sobre si mesma, para que nenhuma parte lhe escapasse. Aproximou-se e contou as borbulhas que se esqueceram da idade dela, os vasos que lhe raiavam os olhos e os mais pequenos pêlos indesejados, numa observação minuciosa do seu rosto. Penteou o cabelo com os dedos e voltou a afastar-se do espelho, sem sair da frente dele.
Desta vez, levou as mãos à cara, para sentir cada uma das irregularidades que detectara. Imediatamente estas desceram-lhe para o pescoço, e deste para o peito. Olhou o seu reflexo nos olhos e deu por ela a delinear os seus traços mais femininos... Com vergonha, afastou os braços do corpo, sentindo-se a entrar em propriedade alheia.
Só passado alguns demorados instantes têve coragem de aproximar o pulso ao nariz, procurando o perfume que pusera de manhã, sem pensar. E, como se aquele aroma a tivesse atordoado, deixou-se cair na cama, para consumar o inesperado e desesperado amor que um espelho mágico lhe indicara.
"Alguém tem de gostar de mim."... E assim dormiu um dos sonos mais tranquilos da sua vida.

sexta-feira, agosto 25, 2006

De volta ao activo

Já era tarde, ela estava cansada. Ela já estava na cama, debaixo dos lençóis, conversando timidamente com o silêncio. As suas pálpebras tremiam, indecisas; devia ela deixar-se dormir ou continuar a muda conversa?
Mas havia demasiadas ideias na sua cabeça... Novelas de hoje, histórias de ontem e preocupações de amanhã. E ela debatia-se com a indecisão frustrante entre um romance, um conto ou um diário. Ou todos... Porque os seus pensamentos estavam tão misturados que se tornava quase impossível começar uma coisa só.
E entretanto, ela decidiu que nessa noite o sono e o cansaço sairiam vitoriosos. Ela travara outras duras batalhas recentemente e embora esta guerra de decisões fosse importante para ela, não estava interessada em martirizar-se mais.

Até uma escritora indecisa merece descansar...