quinta-feira, agosto 27, 2009

Irmão de Agosto


    Passeámos
    De mãos dadas,
    Abrigados
    Nas mesmas madrugadas,
    Entre véus de luz
    E de vapor...
    Respirámos horas,
    Palpitámos calor...

    O calor da tarde,
    Que nos abraçou,
    Brincámos com ele
    Enquanto brilhou...
    Depois, como um sopro
    Que apaga uma vela,
    Encontrámos a Noite,
    Jantámos com ela...

    Voltámos, juntos,
    A sonhar constelações...
    Pintámos de azul
    Os nossos corações,
    E mergulhámos no céu,
    Ainda de mãos dadas,
    E, naquele Agosto,
    Fomos quentes madrugadas...

    domingo, agosto 23, 2009

    Vou viajar

    Vou viajar!
    Vou fugir...
    Pegar num par de asas
    E partir...
    Levantar voo no firmamento,
    E ser pássaro,
    Ser nuvem,
    Ser vento...

    Vou viajar,
    Vou esquecer...
    Abrir os olhos
    Mas deixar de ver
    As cores esbatidas
    Do presente vulgar...
    Vou para o futuro
    Poder pintar.

    Vou viajar,
    Vou sair...
    Arrancar as raízes
    Para poder ir
    Onde ainda não fiz história,
    Onde está para existir
    Aquela fotografia
    Contigo, a sorrir...

    quarta-feira, agosto 12, 2009

    Sereia


      No mar ecoa um cântico elegante,
      Vaga brisa de um timbre sedutor,
      Um apelo ao mergulho asfixiante
      Até às trevas mais profundas do amor...

      Doce canto de harmonia fatal,
      Ritmo estonteante de loucura,
      Condenas todo o homem que te ouve
      A morrer à tua procura...

      Esperando, bem para lá do horizonte,
      Onde a voz te emerge em nitidez,
      Diz-se que a morte é tua sombra
      E os marinheiros leva em tua vez...

      E assim, mergulhada em solidão,
      A irresistível melodia é mais brutal,
      Mais almas se perdem em teus prantos,
      Mais se enchem os teus olhos de sal...

      E por isso
      A lenda conta que os homens
      Se afogam todos em tua bela imagem...
      Então cantas, e mesmo assim não sabes
      Se como tu, a música é miragem...

        terça-feira, agosto 04, 2009

        O Lobo e a Lua


          O Lobo nunca olhava para a Lua, não precisava. Sentia uma comichão leve no focinho quando estava Lua cheia, e sabia que era hora de uivar aos espíritos do Vento e da Caça. Por isso nunca precisava de observar o céu... E quando erguia a cabeça para iniciar a sua oração canina, encerrava sempre os olhos, porque só assim conseguia gritar até ao mais alto agudo, sentido a vibração da sua voz em cada pêlo do seu corpo.
          Mas um dia, num momento de desconcentração, o Lobo ergueu a cabeça de olhos bem abertos e a luz lunar derramou-se na sua visão, como uma cascata de prata líquida. Durante minutos observou aquela visão desconhecida, num misto de espanto e adoração. Nunca antes, nas suas noites de oração, se tinha apercebido da beleza da Noite banhada de luar... E ali ficou até ao nascer do Sol, extasiado com a forma, brilho e graça da Lua, enquanto ao longe ouvia os outros lobos completarem o seu ritual, uivando alto na esperança de que os espíritos lhes abençoassem a caçada.
          Com o passar do tempo a Lua completou outro ciclo: encolheu-se até à Lua Nova, e alimentou-se de luz fresca para se tornar de novo Cheia. Mais uma vez, os lobos uniram-se em uivos distantes, latindo em uníssono a oração dos seus instintos. Mas mais uma vez faltou o uivo agudo do Lobo, e o Vento soprou furioso, agitando as folhagens que em sussurros perversos espalharam pela floresta a notícia do lobo que deixara de uivar...
          No ciclo seguinte, as noites tornaram-se mais frias e agitadas, sempre marcadas pela presença enlouquecida do Vento. Os seus sopros violentos atiravam passarinhos para fora dos ninhos, arrastavam coelhos e veados pelo chão, vergavam árvores anciãs... Pouco a pouco, os animais foram fugindo da floresta, longe daquela flora desfigurada que já não constituía um abrigo... E os lobos rosnavam baixinho enquanto dormiam, sonhando com as presas refugiadas no território de outras alcateias.
          Uma noite antes da Lua Cheia seguinte, o Vento soprou mais forte e determinado, arrancando do chão as raízes pesadas dos Sobreiros que sinalizavam o refúgio dos lobos. Os seus silvos assemelhavam-se ao uivar louco de um lobo velho, rebentando o peito no seu latido, como que a convocar a alcateia. E assim, pouco a pouco, os lobos foram saindo do seu refúgio, uivando tristemente para uma Lua precoce, quase cheia... E no meio do seu choro cantaram o nome do Lobo, aquele que deixara de adorar o Vento e a Caça, que se calara e condenara toda a floresta ao abandono.
          Pela primeira vez naquele ciclo, o Lobo distraiu-se na contemplação Lunar, e ouviu próximos os lamentos da sua raça. E nesse instante relembrou o seu instinto, voltou a sentir aquela comichão no focinho, aquela urgência de soltar na Noite o seu grito agudo. E uivou mais alto e mais claro do que nunca, deixando o seu latido cortar o céu, e atravessar a floresta e as montanhas até chegar aos ouvidos dos animais emigrados...
          O Vento por fim abrandou, e os latidos dos lobos apagaram-se com ele... E o Lobo ganiu baixinho, num lamento de tristeza e culpa pelo destino dos seus irmãos. Caminhou lentamente pela floresta, magro e cansado, e olhou uma última vez a Lua, pela qual se apaixonou assim que a viu, ao ignorar o seu instinto. Ali caiu e ali morreu...

          Na noite seguinte o Vento soprou baixinho, acompanhando o uivar fúnebre da alcateia...


          Para ti, Sofia, porque sei como gostas de lobos...



          Texto por Susana Castilho e imagem por Marco Leal