quarta-feira, dezembro 30, 2009

Borboletas

Quando penso
Nos sonhos
Esvoaçando
Como borboletas
Sobre flores,
Imagino-lhes as cores
O desenho
E o recorte
Das asas,
E o cheiro da sorte
Agarrada ao pólen
Das suas patas...

Quando vejo
As borboletas
Esvoaçando
Como sonhos
Da minha vida,
Tento agarrá-las
Num golpe de sorte
Real, florida...

sexta-feira, dezembro 25, 2009

Prenda de Natal


São papéis dourados,
Fitas aveludadas,
Envolvendo sonhos,
Abraços, gargalhadas...
Pequenos embrulhos
De carinho musical,
Cânticos de sinos
Na noite de Natal...
São poemas, são encantos,
Que vos ofereço assim
Em sorrisos enfeitados,
Palavras de cetim...


O meu poema-presente, escrito nas pequenas prendas que ofereci este ano... Um Feliz Natal para todos!

domingo, dezembro 20, 2009

Noite fria

Enroscou-se um pouco mais no sofá, puxando a manta até ao queixo. Apesar das várias camadas de algodão e lã que lhe cobriam o corpo, e do aquecedor que tentava contrariar o ar gélido daquela noite, sentia-se algo desconfortável, contraída...
A gata saltou-lhe para cima do ombro e, dando algumas passadas pesadas ao longo do seu corpo, deitou-se na concavidade das suas pernas dobradas. Enrolou-se ali e fechou os olhos, partilhando o seu calor felino. E ela tinha agora as pernas quentes, mas o peito ainda frio.
Trocou um sorriso com Ana, enquanto contemplavam a gata, um retrato de apetecível paz... Teceu um comentário qualquer sem grande importância, e ela concordou, em mais uma longa baforada do seu cigarro. Era um cigarro todo branco, de mentol, com que ela própria tentava aquecer o peito, desafogar a noite... E o fumo ia dançando ao som de uma música antiga, com o ritmo de outras décadas, em que um dia tinham desejado viver, num sonho meio tremido, a preto e branco...
Na mesa ainda estava a caixa de fotografias, pedacinhos de estórias e momentos que ambas partilharam com uma pontinha de saudosismo e admiração na voz, uma ou outra lágrima no canto do olho... Incrível a quantidade de sentimentos que se consegue guardar numa só caixa...
Mas naquele momento discutiam o futuro... Entre gargalhadas e olhares brilhantes delinearam diferentes cenários, fantasias e delírios de grandeza, sonhos que falaram alto... E perdidas nas possibilidades de felicidade e tristeza, deixaram os seus risos dissipar-se na noite, enquanto saboreavam o calor que lhes inundava o peito...

sábado, dezembro 12, 2009

Teclas

Ora bem, ela sentou-se, vamos lá começar isto, e assim ela começou a distribuir os dedos pelo teclado, tuc tuc tuc, faziam as teclas... E com o ritmo das suas escritas compôs uma música de melodia incerta, tuc tuc tuc, só se ouvia o bater pausado das teclas, um staccato de velocidade variável, tuc tuc, faziam os dedos dela primindo com precisão, enquanto perante os seus olhos se construia um texto confuso, tuc tuc tuc...
Mas, espera, deixa-me apagar a última frase, ela prime ininterruptamente a mesma tecla, está mal, está feio, e depois de fazer desaparecer aquele pedaço da pauta, espera deixa-me corrigir esta também, e apaga todo o texto, tuc tuc tuc, digita umas reticências...
Tuc tuc tuc, depois de um dia de trabalho foi isto que saiu, tuc tuc tuc, tenho a cabeça cheia, o corpo derrotado, tuc tuc, ouve-se o bater das teclas, sinto a alma dormente...

Finalmente, ela puxou o cabelo para trás das orelhas e encostou-se à cadeira:
"Chegou o frio, tenho o cérebro congelado!"

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Há uma canção na corrente

Há uma canção na corrente
Contando a história do rio...
Há uma canção na corrente
Na melodia de um assobio...

Uma canção de criança,
De inocente e límpida voz...
Uma canção de criança,
Um sorriso perdido na foz...

Leva a fragata de Outono,
Folhas secas a navegar...
Leva a fragata de Outono
Rumo ao sonho, rumo ao mar...

Canta também a floresta,
Melodia de passarinhos e vento...
Canta também a floresta
Ao rio que é seu alimento...

E há um arrepio de frio
Na pele nua de dois amantes...
Há um arrepio de frio,
Ritmo de corações palpitantes...

E também a cascata estremece...
Guitarra soluçando um fado...
Também a cascata estremece
Quando o rio lhe canta o passado...

Mas há uma canção na corrente
Arrastando pedacinhos de nós...
Melodia inconsequente
Que se dissipa na foz...
E entre timbres de outras memórias,
Vozes salgadas de mar,
Transforma-se o rio de histórias
Em ondas azuis a dançar...

domingo, novembro 22, 2009

Na rádio

E enquanto nos damos
Embrulhados em nossas mãos,
E desenrolamos abraços
Em suspiros leves e vãos,
A rádio lança no ar
Uma melodia abafada
Num beijo, pleno em vapor
De uma noite embaciada...

segunda-feira, outubro 26, 2009

A Floresta Branca



A história das cores da floresta começa há muito tempo atrás, no dia em que as fadas, os duendes, as ninfas, os gnomos e os centauros a encontraram e fizeram dela sua casa. Nessa altura a floresta era branca, como uma página por preencher num livro de colorir. Na terra acídica de tez pálida cresciam ervas e arbustos brancos, vizinhos de altos carvalhos de troncos brancos com copas frondosas e brancas. Pequenos frutos e flores brancas espreitavam por entre as claras folhagens, e junto às raízes tortuosas emergindo do solo escondiam-se cogumelos todos brancos, sem pintas. As águas dos lagos e riachos ondulavam em correntes brancas e as montanhas longínquas recortando o horizonte vestiam-se também de brancas cores. E recobrindo toda a floresta como um vasto manto de brancura, estendia-se um céu branco com brancas nuvens, iluminado pela luz branca do Sol. E as fadas, os duendes, as ninfas, os gnomos e os centauros ficaram fascinados pela magia daquele lugar tão branco e resolveram torná-lo no seu novo lar.
Mas toda aquela brancura inquietou as ninfas, belas mulheres de pele clara usando leves vestidos de seda tão branca como a neve. Não lhes agradava ver a sua beleza camuflada na paisagem, e propuseram às outras criaturas que se decorasse a floresta de mil cores vibrantes. As fadas adoraram a ideia e logo transformaram as suas varinhas em finos pincéis. Os duendes deram pulinhos entusiasmados de satisfação, imaginando as imensas travessuras e guerras de tinta que a tarefa prometia. E os gnomos e centauros aceitaram também a proposta, seduzidos pelas ninfas.
E assim, bem cedo na clara manhã, os novos habitantes da floresta começaram a colori-la. As águas dos lagos e riachos foram pintadas pelas ninfas em tons de safira transparente, e as montanhas adornadas de cores de granito e mármore. Os duendes encarregaram-se das plantas, atirando sobre as copas das árvores baldes de tinta verde, que pingou no chão tingindo as ervas mais rasteiras da mesma cor. Pintaram as frutas com as mãos e salpicaram os arbustos com gotas carmim, fazendo nascer pequenas bagas. E escolheram para os cogumelos apetitosos tons de vermelho, dando risinhos traquinas quando o duende mais pequeno caiu no balde de tinta pérola, espalhando pintas brilhantes nos seus chapéus.
Servindo-se de pequenas paletas de madeira, as fadas ocuparam-se das pinturas mais finas, pincelando com minúcia as pétalas das flores e as asas das borboletas. Depois, voaram bem alto e pintaram o céu de azul celestial, emoldurando delicadamente a brancura das nuvens. E espalharam purpurinas douradas nos raios de Sol, coroando-o rei do céu matinal.
Para os gnomos ficaram os troncos das árvores e o solo, que encheram de tons secos de castanho terrestre, enquanto que os centauros se voluntariaram para escurecer os recantos mais sombrios, e pintaram no céu o enigma da noite.
Mas durante toda esta azáfama na floresta, um dos gnomos escondeu-se a um canto, irritado com as gargalhadas histéricas dos duendes atirando tinta para cima uns dos outros e com as canções alegres das fadas esvoaçando sobre a sua cabeça. Detestava tarefas felizes e harmoniosas como pintar a floresta de mil cores. E foi assim, entre risos maliciosos, que planeou roubar os baldes dos duendes e as paletas de tinta e pincéis das fadas, nessa noite, quando todos estivessem a dormir.
No meio da escuridão recolheu todo o material de colorir e caminhou furtivo por entre as árvores, de paletas de madeira debaixo dos braços, baldes de tinta pesando-lhe nas mãos e pincéis atravessados na boca. E mesmo antes de entrar no seu esconderijo dentro de uma gruta, sentiu um peso bruto prender-lhe a cauda e caiu para trás, atirando no ar os baldes, paletas e pincéis. E assim fez cair sobre a floresta uma chuva de gotas de tinta colorida.
Na manhã seguinte, a floresta despertou com os risos curiosos dos duendes a gozar com o gnomo caído no chão, coberto de tinta e dormindo de balde na cabeça. Só mais tarde se aperceberam do arco-íris que nascia na sua gruta e atravessava o céu, perdendo-se no horizonte. E longe, sobre as montanhas, ainda conseguiram avistar o centauro que pisou a cauda do gnomo, calvalgando velozmente por esse caminho colorido. Nunca mais o voltaram a ver... Mas as fadas dizem que ele agora vive no cume de uma montanha, vigiando os gnomos que querem pregar partidas aos outros habitantes da floresta...



(Texto por Susana Castilho e Imagem por Marco Leal)

domingo, outubro 25, 2009

No teu cantar

Músicas sentidas,
Aplausos sussurrantes,
Lágrimas rendidas
À espera que tu cantes...
À espera que recolhas
Nossas almas na tua mão,
E as projectes para o céu
Na aguda voz dessa oração...

E esperamos na guitarra
Uma resposta do além,
Acordes de magia e graça,
Bênção muda de ninguém...
A voz de um anjo distante
Em ritmos íntimos demais...
Esperamos a comunhão
De sons e cores celestiais...

Guitarradas de ternura,
Sentimentos singulares,
Sorrisos de alegria pura
À espera que não pares,
Temendo que o silêncio
Nos aprisione o respirar
Ao iluminar o anjo
Nascido no teu cantar...

sábado, outubro 17, 2009

Sorriso Rasgado

Pintei
Num pedaço de papel
Desenhos coloridos
Com um pincel...
E guardei com cuidado
No meu bolso
A alegria amachucada
Desse esboço.

Mas um dia
Quero pintar
A tua presença
Suspensa no ar...
Rasgar o papel
Para libertar
A alegria pintada
No teu respirar...

Quero oferecer-te
Um abraço terno,
Desdobrar-te um sorriso
Do meu caderno...
E dar-te um pincel,
Para pintares comigo
Gargalhadas soltas
De um novo amigo...

terça-feira, outubro 13, 2009

Raio Solar

Procuro em cada raio de Sol
Um vestígio claro desse olhar,
Um sorriso pintado no céu
Como herança do teu amar...
Uma memória quente a dançar...

Um calor terno, calmante,
Invisível carinho distante,
Flutuando como uma canção...
A energia pura e vibrante
Que outrora animou tua mão...

Espero por esse reflexo
Nas lágrimas que vou chorando,
Espero esse raio solar
Que as leve, evaporando
A saudade do teu olhar...

Mas não sei se moras na luz
Em que te tento lembrar,
Ou se o Sol te perdeu
Naquela noite de brando luar
Visitando o meu sonhar...


Para o meu pai, que recordarei sempre com carinho...

sábado, outubro 10, 2009

Em minhas mãos

Abri as mãos
E mostrei a toda a gente
Uma bola de suave cristal reluzente,
Quase invisível de tão transparente...
Um novelo de energia a florescer
Em finas tranças de calor,
Faíscas brancas deste ser...

Desenrolei a minha esfera de potencial
Estendendo-a no céu
Que revesti de cristal...
Quebrei-o depois em mil fragmentos,
Que são hoje estrelas, sorrisos, momentos
Vivendo no céu do meu sonhar...
Guardei tudo nestas mãos
Carregadas de amar...

segunda-feira, setembro 21, 2009

Um excerto dele

"Naquele dia, ele levantou-se cedo, arrastando-se pela casa como um sonâmbulo. Encheu uma caneca de leite e café, quase sem abrir os olhos, e sentou-se à janela da cozinha, deixando a claridade habituar-se à sua presença. E foi sorvendo assim os primeiros raios de Sol, até sentir coragem suficiente para enfrentar o resto da sua rotina.
Fazer a barba, tomar duche, vestir, conduzir até ao trabalho, trabalhar, trabalhar, trabalhar, pausa para café, reunião, almoço, trabalhar, trabalhar, trabalhar, pausa para dois dedos de conversa com o colega do lado, encerrar a sessão, voltar para casa... Um suspirar de alívio depois de um dia sufocado..."

A vantagem do narrador, pensou ela, é poder saber o que se passa dentro das personagens. É saber que música ressoa nos seus pensamentos, é conhecer-lhe as pulsações e frequência respiratória, é adivinhar-lhe as decisões ainda antes de haver opções...

E ela queria ser a narradora dele...

domingo, setembro 20, 2009

Seixos

Já era tão tarde!... Mas ela tinha, ela precisava de escrever antes de se entregar ao sono. Estava-lhe no sangue aquela urgência de libertar o que lhe palpitava no peito, de materializar sentimentos nos seus textos. Também assim se revelava ao mundo, já que tantas vezes se sentia invisível. Talvez dessa forma, escrevendo, como quem deixa um rasto de pequenos seixos na floresta, talvez fosse essa a maneira de fazer alguém encontrá-la, alguém de mão dada com muita felicidade.
Ela acreditava, pois, que recusando o aconchego tranquilo do sono em prol de uma produção de texto mais ou menos improvisada estaria a atrair um futuro mais sorridente... Mais um texto, mais um seixo no caminho...



Penso, com isto, retomar a História dela... Mas como de intenções está o Inferno cheio, não prometo nada!

quinta-feira, setembro 17, 2009

Fado de dragão

No travo alto da fumaça
Cinzenta, que inspira a garganta,
Expira-se a labareda
Do monstro que a tantos espanta
E a tantos outros devora...
Aquele monstro que apenas chora
Momentos antes de morrer,
Para que o dilúvio de lágrimas
Lhe apague a chama de ser...
Para em cinzas repousar,
Como incêndio apaziguado...
Para extinguir a fúria
De um fogo descontrolado...

Ira de fumo sai-lhe da boca,
Do olhar inflamável de paixão...
Aquele monstro prefere chorar
A morrer em combustão,
Porque vive com medo de amar...
Cruel fado de dragão...


terça-feira, setembro 15, 2009

Arrumações

Preciso de me encontrar...
Debaixo de um tapete,
Atrás de alguma porta,
Dentro de um armário qualquer...
Preciso de me encontrar,
Esteja eu onde estiver...

Preciso de me encontrar,
No compasso de alguma dança,
Numa palavra, num verso,
Nalgum sorriso de criança...
Preciso de me encontrar
Lado a lado com a esperança...

E depois de me encontrar,
Quando sacudir a poeira,
Vai ser hora de arrumar...
Tirar da prateleira,
Varrer debaixo do tapete,
Trancar a porta a cadeado
Do armário das lembranças...
Vai ser hora de mudar
A valsa das minhas danças,
Escrever novos poemas,
Sorrir a outras crianças...

Vai ser hora de continuar,
Vai ser tempo de esquecer...
Preciso de me encontrar,
Ainda mais de te esconder...

terça-feira, setembro 01, 2009

Promessa


    Desenharei,
    Em gestos delicados,
    A oração
    Dos meus pecados...
    Constelação
    De passos trocados...

    Saltarei,
    Viajando no espaço,
    Mão estendida
    A algum pedaço
    De luar...
    Recomeçarei
    Se tropeçar...

    E deslizarei
    Entre nuvens,
    Ardente...
    Rodopiarei,
    (Talvez para sempre)
    Sem acabar
    A coreografia...

    E só pararei,
    No momento,
    No dia,
    Em que o teu aplauso
    Prometer magia...
    E numa simples vénia
    Acabarei nua...
    Dentro do verso
    De uma dança tua...

      quinta-feira, agosto 27, 2009

      Irmão de Agosto


        Passeámos
        De mãos dadas,
        Abrigados
        Nas mesmas madrugadas,
        Entre véus de luz
        E de vapor...
        Respirámos horas,
        Palpitámos calor...

        O calor da tarde,
        Que nos abraçou,
        Brincámos com ele
        Enquanto brilhou...
        Depois, como um sopro
        Que apaga uma vela,
        Encontrámos a Noite,
        Jantámos com ela...

        Voltámos, juntos,
        A sonhar constelações...
        Pintámos de azul
        Os nossos corações,
        E mergulhámos no céu,
        Ainda de mãos dadas,
        E, naquele Agosto,
        Fomos quentes madrugadas...

        domingo, agosto 23, 2009

        Vou viajar

        Vou viajar!
        Vou fugir...
        Pegar num par de asas
        E partir...
        Levantar voo no firmamento,
        E ser pássaro,
        Ser nuvem,
        Ser vento...

        Vou viajar,
        Vou esquecer...
        Abrir os olhos
        Mas deixar de ver
        As cores esbatidas
        Do presente vulgar...
        Vou para o futuro
        Poder pintar.

        Vou viajar,
        Vou sair...
        Arrancar as raízes
        Para poder ir
        Onde ainda não fiz história,
        Onde está para existir
        Aquela fotografia
        Contigo, a sorrir...

        quarta-feira, agosto 12, 2009

        Sereia


          No mar ecoa um cântico elegante,
          Vaga brisa de um timbre sedutor,
          Um apelo ao mergulho asfixiante
          Até às trevas mais profundas do amor...

          Doce canto de harmonia fatal,
          Ritmo estonteante de loucura,
          Condenas todo o homem que te ouve
          A morrer à tua procura...

          Esperando, bem para lá do horizonte,
          Onde a voz te emerge em nitidez,
          Diz-se que a morte é tua sombra
          E os marinheiros leva em tua vez...

          E assim, mergulhada em solidão,
          A irresistível melodia é mais brutal,
          Mais almas se perdem em teus prantos,
          Mais se enchem os teus olhos de sal...

          E por isso
          A lenda conta que os homens
          Se afogam todos em tua bela imagem...
          Então cantas, e mesmo assim não sabes
          Se como tu, a música é miragem...

            terça-feira, agosto 04, 2009

            O Lobo e a Lua


              O Lobo nunca olhava para a Lua, não precisava. Sentia uma comichão leve no focinho quando estava Lua cheia, e sabia que era hora de uivar aos espíritos do Vento e da Caça. Por isso nunca precisava de observar o céu... E quando erguia a cabeça para iniciar a sua oração canina, encerrava sempre os olhos, porque só assim conseguia gritar até ao mais alto agudo, sentido a vibração da sua voz em cada pêlo do seu corpo.
              Mas um dia, num momento de desconcentração, o Lobo ergueu a cabeça de olhos bem abertos e a luz lunar derramou-se na sua visão, como uma cascata de prata líquida. Durante minutos observou aquela visão desconhecida, num misto de espanto e adoração. Nunca antes, nas suas noites de oração, se tinha apercebido da beleza da Noite banhada de luar... E ali ficou até ao nascer do Sol, extasiado com a forma, brilho e graça da Lua, enquanto ao longe ouvia os outros lobos completarem o seu ritual, uivando alto na esperança de que os espíritos lhes abençoassem a caçada.
              Com o passar do tempo a Lua completou outro ciclo: encolheu-se até à Lua Nova, e alimentou-se de luz fresca para se tornar de novo Cheia. Mais uma vez, os lobos uniram-se em uivos distantes, latindo em uníssono a oração dos seus instintos. Mas mais uma vez faltou o uivo agudo do Lobo, e o Vento soprou furioso, agitando as folhagens que em sussurros perversos espalharam pela floresta a notícia do lobo que deixara de uivar...
              No ciclo seguinte, as noites tornaram-se mais frias e agitadas, sempre marcadas pela presença enlouquecida do Vento. Os seus sopros violentos atiravam passarinhos para fora dos ninhos, arrastavam coelhos e veados pelo chão, vergavam árvores anciãs... Pouco a pouco, os animais foram fugindo da floresta, longe daquela flora desfigurada que já não constituía um abrigo... E os lobos rosnavam baixinho enquanto dormiam, sonhando com as presas refugiadas no território de outras alcateias.
              Uma noite antes da Lua Cheia seguinte, o Vento soprou mais forte e determinado, arrancando do chão as raízes pesadas dos Sobreiros que sinalizavam o refúgio dos lobos. Os seus silvos assemelhavam-se ao uivar louco de um lobo velho, rebentando o peito no seu latido, como que a convocar a alcateia. E assim, pouco a pouco, os lobos foram saindo do seu refúgio, uivando tristemente para uma Lua precoce, quase cheia... E no meio do seu choro cantaram o nome do Lobo, aquele que deixara de adorar o Vento e a Caça, que se calara e condenara toda a floresta ao abandono.
              Pela primeira vez naquele ciclo, o Lobo distraiu-se na contemplação Lunar, e ouviu próximos os lamentos da sua raça. E nesse instante relembrou o seu instinto, voltou a sentir aquela comichão no focinho, aquela urgência de soltar na Noite o seu grito agudo. E uivou mais alto e mais claro do que nunca, deixando o seu latido cortar o céu, e atravessar a floresta e as montanhas até chegar aos ouvidos dos animais emigrados...
              O Vento por fim abrandou, e os latidos dos lobos apagaram-se com ele... E o Lobo ganiu baixinho, num lamento de tristeza e culpa pelo destino dos seus irmãos. Caminhou lentamente pela floresta, magro e cansado, e olhou uma última vez a Lua, pela qual se apaixonou assim que a viu, ao ignorar o seu instinto. Ali caiu e ali morreu...

              Na noite seguinte o Vento soprou baixinho, acompanhando o uivar fúnebre da alcateia...


              Para ti, Sofia, porque sei como gostas de lobos...



              Texto por Susana Castilho e imagem por Marco Leal

                segunda-feira, julho 20, 2009


                  Descobri um dia
                  Que o amor se enrolou
                  Num corpo que julgava
                  Ter nascido só meu,
                  Mas quando o descolei
                  E o chamei para mim,
                  Vi que ele me arrastava
                  O coração para o fim.

                  O amor não desgrudou
                  Daquele vil coração
                  Trancado naquele corpo
                  Que duvido ser meu.
                  Deixou pegadas grandes
                  Que não cabem nos pés
                  Que arrasto com a alma
                  Que não sabe quem és.

                  Foi assim nua
                  Que acabei por parar,
                  Sem corpo, coração
                  Ou alma p'ra me apoiar.
                  O amor, levou-o o corpo
                  Que afinal era teu...
                  A dor ficou p'ra trás
                  Em todo o nada que é meu.

                    sábado, julho 18, 2009

                    Não dances comigo


                      Sem vontade de dançar...
                      Arruma já as sapatilhas.
                      As chagas nesses pés,
                      Marcas de dor e maravilhas...

                      Corpo erodido, cansado,
                      Em lágrimas e suor perfumado,
                      Escorreu-te a dança pela testa,
                      Baptizou-te amor malfadado...

                      Jazes agora, assim, imóvel,
                      De silêncio acompanhado...
                      A inércia convida
                      A dançar, estando parado.

                      Mas não dá para dançar
                      Acorrentando o coração...
                      Abdica deste amor,
                      Pas de deux sem paixão...

                        quarta-feira, junho 24, 2009

                        Enquanto esperava, olhou o horizonte recortado em luzes nocturnas... Suspirou e esperou.

                        quinta-feira, junho 18, 2009

                        Abraço de árvore

                        Cuspi para o chão. Limpei a boca com o dorso da minha mão... uma picada, um ardor ácido na pele... A saliva ainda no canto dos lábios, como um veneno tóxico, desfigurante...
                        Abri a boca e deixei o ar prolongar-se sobre a minha língua, ar húmido de fragrância verde, percorrendo cada sulco, papila a papila... Mas o sabor de relva e primavera diluiu-se no travo azedo da minha boca, até perecer calado, apenas um cheiro vago, pegada volátil na atmosfera...

                        Abracei aquela árvore anciã, de tronco robusto e impossível, impossível de envolver em braços tão curtos... Recebi um beijo áspero, antigo, que me rasgou o lábio, inundando-me a boca em sangue. Com a mesma mão ulcerada de veneno, esfreguei-o na minha face...
                        Encostei firmemente a cara à minha árvore e olhei o horizonte. Saboreei o gosto férrico do sangue na minha língua... Na manhã seguinte, o Sol descobriu ali uma árvore estreita, corcunda, parasita, na sombra daquela árvore imponente, robusta, enorme... Amantes que ali se uniram...

                        domingo, junho 14, 2009

                        Obrigada palavras, são o meu escape dos sentimentos, a minha interpretação de emoções... Sem vocês, estaria verdadeiramente louca.

                        sexta-feira, junho 12, 2009

                        Populares

                        Ela abriu o jornal despreocupadamente, folheou-o sem ler um único artigo inteiro, até que uma caixinha de texto cinzenta e discreta lhe piscou o olho:

                        "Versos populares de Fernando Pessoa:

                        Meu coração a bater
                        Parece estar-me a lembrar
                        Que, se um dia te esquecer,
                        Será por ele parar."

                        "Nada mais adequado!" disse ela, para ninguém em particular. E sorriu muito, um sorriso quase feliz...

                        Circunstâncias peculiares

                        Este blog começou em circunstâncias peculiares, dolorosas mesmo. Nasceu de uma necessidade de criar um espaço mais maduro, mais conceptual, mais coeso, e da vontade de largar um blog adolescente, volátil, desconcentrado. Estes objectivos, ainda não os atingi totalmente, mas sinto-me um pouco mais próxima deles, finalmente, tantos anos depois...
                        E anos depois, as circunstâncias são tão semelhantes: a vivência de uma tristeza aguda, e a perspectiva de uma melancolia crónica. Sem tratamento eficaz, com um prognóstico reservado...
                        Usar o blog como terapia ocupacional? Talvez... Não restitui a qualidade de vida anterior, mas pode ajudar na adaptação à deficiência de alegria. Talvez, talvez...

                        Tenho tanta pena dela, a partir de agora uma personagem mais triste...

                        quinta-feira, junho 11, 2009

                        Insuficiência cardíaca

                        Por fim, acabou-se o sossego... Acabou-se o conforto de um futuro mais ou menos certo, mais ou menos risonho, sobretudo risonho...
                        Ela olhou pela janela, admirou a promessa de um dia quente, um dia vão... Que dia estranho para a incerteza, que dia errado para a indecisão. Um dia dourado que noutro universo estaria predisposto ao baptismo sorridente de uma felicidade costumeira, familiar, agradável...
                        "Não interessa, era suposto ser um dia feliz!" Pensou, angustiada com o futuro, traumatizada pelo presente. Tentava desesperadamente sorrir, mas o seu único sorriso era agora sardónico, implacável, venenoso... Um parasita imundo agarrado a um rosto raptado à alegria...

                        Fechou os olhos, refugiando-se da luz. Sentia o coração pulsar na garganta, aprisionado, estenótico. Aliás, todo o seu corpo pulsava, rítmico, inundado pelo sangue que ela paradoxalmente acreditava acumular-se no seu peito.
                        "Pode alguém afogar-se no seu próprio sangue?" Ponderou na sua questão durante cerca de um minuto, e a resposta, convicta, era "sim". Medicamente falando, ou não. Imaginou os seus pulmões sangrando, lentamente absorvendo o líquido como uma esponja, tornando-se pesados, incómodos...
                        Mas a sua autópsia, reflectiu ela, revelaria uma outra patologia fatal... Uma doença de coração, de um coração que se julgou maior, que acomodou aquele volume adicional, e que, por tanto se esforçar, deixou de bater, exausto.

                        "Quão exausto pode o meu coração ficar?" Abriu os olhos, que se inundaram de luz. Ainda sentia o coração bater...

                        sexta-feira, maio 01, 2009

                        Polegarzinha


                          Sempre foste frágil...
                          Caule esguio,
                          Corpo em flor...
                          Leve pluma delicada
                          Esvoaçando em meu redor...
                          Gentil sorriso de fada,
                          Figura estreita e franzina...
                          Sempre foste pequenina.

                          Mas só agora te vejo assim,
                          Finas asas de cetim
                          Lutando contra o vento...
                          Imbatível coragem
                          Em cada movimento.
                          O sorriso protector,
                          O olhar líquido de esperança
                          Sem vestígio de dor...
                          Meu abrigo de criança.

                          Sempre foste como eu,
                          De frágil natureza...
                          Mas coberta de magia
                          Escudando-me da tristeza.
                          Larga agora os teus feitiços,
                          Descansa as asas na canção
                          Que te ofereço enquanto dormes
                          Guardada na minha mão...

                          Sempre foste pequenina,
                          Minha polegarzinha...


                          Prenda do dia da mãe...

                            terça-feira, abril 21, 2009

                            Agorafobia

                            Ela abriu os olhos.
                            "Não, não, não!" Voltou a fechar os olhos.
                            Mentalmente, analisou a sua situação. Calculou as suas coordenadas naquela rua movimentada, fez uma estimativa do número de pessoas que ali circulavam e registou a localização dos cafés e lojas mais próximas. Isto acalmou-a um pouco.
                            "Ok..." pensou ela "Em frente é que é o caminho!"
                            Reabriu então os olhos para a imagem real daquilo que esboçara na sua cabeça. Pestanejou levemente para habituar a vista à claridade. Começou então a andar em linha recta naquela calçada irregular e percorreu ligeira até ao fundo da rua, deixando as lojas que memorizara para trás.
                            Caminhou mais alguns metros com uma postura decidida, até que congelou. Os seus olhos perderam-se no infinito e por breves segundos foi como se tivesse deixado o seu corpo ali, sózinho, desamparado, vazio...
                            "Bolas!" disse entre dentes.
                            Abanou a cabeça. Da mesma maneira que esvaziara o seu corpo, facilmente voltou a ele, reactivando-o e devolvendo-lhe vida e movimento. Depressa virou costas ao sentido que tinha tomado previamente, voltando para trás.
                            Percorreu na sua cabeça todos os insultos e injúrias que conhecia, repetindo-os silenciosamente nos seus pensamentos. Por que razão não conseguia prosseguir aquele caminho, porque é que o medo dominava as suas reacções, porque é que continuava a ridicularizar-se em público?
                            De repente lembrou-se: o público. Olhou para o lado fortivamente, apenas para deixar a cabeça retomar a sua posição inicial ainda mais depressa.
                            "Bolas, bolas, bolas, bolas, bolas, bolas..." resmungou ela em volume quase inaudível, abrindo os lábios mais do que o necessário.
                            Tinha-se lembrado das outras pessoas que também ali passavam, aquelas caras terríveis e intimidantes, aqueles olhares furtivos e cruéis, que a castigariam pelo seu medo irracional, que a catalogariam facilmente como louca... E nas suas costas, uma multidão muito maior, um corredor estreito em que certamente seria inevitável tocar num desconhecido que ali se aglomerasse... Aquele toque que a enojaria, aqueles empurrões violentos que a atirariam para o outro lado, para um outro corpo, provavelmente suado, para um rosto ainda mais assustador, para uns olhos que condenariam a sua histeria, um purgatório na terra, em vida plena...
                            Tapou a cara com ambas as mãos em concha. Encheu o peito de ar, e depois expirou lentamente pela boca, deixando o ar insuflar-lhe as bochechas antes de se escapar pelos seus lábios semi-cerrados num leve assobio. Seguiu então, na mesma direcção e sentido, de olhos colados ao chão. Todo o medo avassalador deixado para trás, por combater...

                            quinta-feira, abril 02, 2009

                            Ritual


                              Sente.
                              Esquece
                              mexe
                              repete
                              sente.
                              Não pares
                              de repente
                              o corpo
                              é a tua mente
                              sente.
                              Inspira
                              esse ar
                              que te tenta
                              controlar
                              guia-te
                              nesse olhar
                              também ele
                              está a dançar
                              e
                              sente.
                              Canta
                              com a voz
                              das tuas mãos
                              dos teus pés
                              sente.
                              Flui
                              lágrima fria
                              magma
                              quente
                              sente.
                              Descontrola-te
                              explode
                              derruba
                              sacode
                              treme
                              sempre
                              sente.
                              Abranda
                              mas
                              sem parar
                              saboreia
                              o teu suor
                              fala
                              com os dedos
                              tapa a cara
                              os ouvidos
                              solta
                              enfim
                              leves gemidos
                              e sente-te.

                              quarta-feira, março 11, 2009


                                Ela tinha decidido não estar sózinha. Mas, curiosamente, apercebeu-se que não sabia bem como fazê-lo. Sempre têve poucos amigos, e sempre têve alguma dificuldade em adquirir novos conhecimentos e amizades. Agora, naquela cidade, que fora o seu lar de sonho e o seu desejo de infância, naquele lugar perfeito, mas tão novo, sentia-se perdida e verdadeiramente desamparada.
                                O Sol tinha acordado bem humorado, e por isso procurou numa rua qualquer uma esplanada para se sentar. Abrigou-se na sombra de um guarda-sol, pediu um sumo de laranja natural, e deixou-se ficar a observar. As pessoas iam-se sentando e levantando aleatoriamente, numa coreografia descoordenada e bizarra. Alguns eram jovens que partilhavam dramas hormonais entre goladas apressadas num café açucarado. Outros eram idosos isolados, que levavam uma chávena de chá trémula a uma boca enrugada. Casais, havia-os de todas as idades: os de terceira idade que discutiam mazelas várias e o número de medicamentos que cada um tomava; os de meia idade, que partilhavam um café e uma mão no meio de uma conversa muda; e os mais novos, loucamente apaixonados, que se beijavam e acariciavam sem pudor, esquecendo-se dos refrescos em cima da mesa.
                                Ali ficou a olhar, sem saber bem o que procurava. A certa altura, cruzou o olhar com um homem que chegava à esplanada, e que depois de a mirar prolongadamente, sorriu abertamente na sua direcção. O seu coração parou um segundo, e os seus olhos congelaram na face que a fitava: cabelos castanhos em desalinho, olhos cor de mel reluzentes, um nariz torto mas desconcertantemente encantador... E um sorriso que lhe aquecia a alma.
                                Mas a magia não prometia durar muito... Quando despertou daquele estado atordoado, viu que uma rapariga se aproximava dele. Abraçaram-se e beijaram-se prolongadamente, e finalmente entraram no café.
                                Sentiu-se corar um pouco. Sentiu também alguma desilusão pelo desfeche daquele momento. Olhou para o seu copo já vazio e resolveu que provavelmente seria melhor ir-se embora.
                                Em casa, sentou-se à secretária, e abriu um caderno antigo, de páginas amareladas. Abriu-o numa página despida de palavras e respirou fundo. Assim escreveu:

                                "Sentei-me no lugar do costume, na mesa do canto do café do Sr. Félix. Tirei o caderno e a caneta da mala, e apressei-me a depositar as minhas ideias no papel, enquanto ainda estavam frescas. Algumas frases mais tarde, senti na nuca aquele arrepio terrível que me alerta da presença de um olhar sobre mim. Ergui a cabeça, e lá estava ele, de expressão solene, a segurar numa chávena de café.
                                -Parece-me que este café é seu. -Disse-me ele, educadamente.
                                Não sei o que me deu, mas respondi-lhe:
                                -Então agora o sr. Félix tem serviço de mesa?
                                -Acho que não.
                                E sorriu. Os seus olhos cor de mel observando atentamente a minha reacção. Sorri-lhe também, e ali ficámos uns segundos, olhos nos olhos, eu sentada e ele de pé, inclinado sobre a mesa como quem se tenciona instalar.
                                Finalmente poisou a chávena de café sobre a mesa, fez uma ligeira vénia, e virou costas, sentando-se numa mesa ao lado.
                                Durante o resto da tarde não me atrevi a olhar naquela direcção. Mas fui sentindo na nuca arrepio atrás de arrepio; estava certamente a observar-me. Só quando me levantei para pagar tive coragem de olhar para a sua mesa: vazia... Mas na cadeira vi um pequeno papel, que me apressei a apanhar. "Já está pago", li em voz baixa. Estranhei aquele recado, e por precaução perguntei ao sr. Félix quanto lhe devia.
                                -O seu amigo já pagou!"

                                E pelo menos naquele dia, a sua história fez-lhe companhia.

                                  História de solidão


                                    Uma pequena gota de suor percorreu-lhe as curvas do rosto, para finalmente cair no chão. Ela abanou energicamente a cabeça, projectando outras gotículas em todas as direcções. Mas continuou...
                                    Após alguns saltos e piruetas terminou numa pose firme, confiante. Mas toda a sua segurança se desmoronou numa fracção de segundo, quando se atirou ao chão, respirando sofregamente. Ainda hiperventilando, decidiu que estava na hora de parar.
                                    Lavou a cara com água bem gelada, passando as mãos sobre os olhos e bochechas. Analisou a sua face rosada no espelho antes de a enxugar demoradamente numa toalha macia. Sabia bem parar e sentir aquelas gotas frias escorrerem-lhe sobre as feições ainda escaldadas.
                                    Sentou-se e olhou em volta, o balneário vazio e o relógio avançado. Aquela solidão, que lhe permitia descansar e lavar-se sem pressa, sem um único som para além do correr da água do chuveiro ou do tilintar da fivela do cinto ao ser apertada, essa solidão serena, essa sim, sabia-lhe bem.
                                    Durante o dia, várias eram as ocasiões em que se sentia só. Sentia-se só, quando se sentava na mesa do canto do café e fumava o seu cigarro em baforadas lentas, observando o fumo atravessar o lugar vazio à sua frente. Sentia-se só quando passeava pelas lojas, experimentando conjuntos ousados, que a faziam desejar ter alguém que lhe desse uma opinião. Sentia-se só quando ia para as aulas, sabendo que naquele anfiteatro cheio de jovens estudantes como ela própria, não haveria ninguém que lhe guardasse o lugar se chegasse atrasada. Sentia-se só quando se deitava de noite, por não ter o calor de um homem a quem se agarrar, a quem beijar sofregamente, na esperança de fazer toda aquela solidão desaparecer...
                                    Mas naquele momento, naquele balneário, sem ninguém por perto, sentia-se só, mas não se sentia infeliz. Estava serena. Cansada, nua, relaxada...
                                    Acabou de se vestir, e arrumou as coisas rapidamente na mala. Saiu finalmente do balneário, e da academia. Ao dizer "boa noite" à recepcionista não pôde deixar de notar que esta a seguiu com o olhar, certamente admirada pela hora tardia a que saíra.
                                    Dirigiu-se sózinha para o carro, e conduziu até casa. Ao chegar ao seu quarto atirou-se para cima da cama e fechou os olhos, absorvendo aquela solidão pacífica. E decidiu que não passaria outro dia sózinha.

                                      segunda-feira, março 09, 2009

                                      Mudança de planos




                                          Mudança de planos... Ela rasgou as folhas com gestos bruscos e violentos, enraivecida pelo seu conteúdo. À medida que ia destruindo o que restava do seu manuscrito, foi pensando no passo seguinte: reescrever tudo outra vez, em folhas virgens, em futuros incertos, ser profeta apenas com uma caneta.
                                          Esperar que o texto flua sózinho, usando-lhe as mãos como instrumento, riscar as frases erradas com outro vigor, e reler as suas palavras com outro olhar, procurando eliminar todo e qualquer traço de imperfeição, sem se lembrar que tal é impossível...
                                          Atirou então os pedaços de papel amachucados, deixando-os espalhar-se pelo chão, à mercê da sua sorte... Desprezou-os com um olhar de superioridade e voltou-se a sentar na secretária, de caneta em punho, e com uma nova página do caderno aberta à sua frente. E escreveu:

                                          "Se pudesse recortar a vida
                                          Em vários pedaços ou tiras,
                                          Rasgaria para sempre
                                          Todas as mentiras.
                                          (...)"


                                            quinta-feira, fevereiro 26, 2009

                                            Luzes...Estrelas...


                                              Desejei ser uma dessas luzes
                                              Que marca o céu nocturno
                                              Como um diamante perdido
                                              Num manto de veludo
                                              Carregado por uma mulher fria,
                                              Altiva e impenetrável...
                                              Queria apenas o protagonismo
                                              De uma figurante perdida
                                              Na imensidão de um cenário,
                                              Um cenário que não me pertence
                                              Mas que se torna um pouco mais belo
                                              Com a minha tímida presença.
                                              Nunca desejei ser a Lua,
                                              Ou o Sol,
                                              Ou outra luz tão intensa e dura...
                                              Apenas almejei ser um leve brilho,
                                              Um guia para os humildes
                                              Que não ambicionam mais
                                              Do que um piscar trémulo
                                              Para lhes iluminar o caminho...
                                              Ser apenas uma
                                              No meio da constelação,
                                              E aguardar a sorte
                                              De numa noite vulgar
                                              Poder sentir em mim o teu olhar...

                                                  sábado, fevereiro 21, 2009

                                                  Uma valsa...


                                                    5ª posição...
                                                    Agora apresenta.
                                                    Salta,
                                                    Sustém,
                                                    Corre opulenta...
                                                    Agora estica-te
                                                    E sorri...
                                                    Repete tudo até aqui:
                                                    Salta,
                                                    Sustém,
                                                    Corre,
                                                    Aguenta...
                                                    Exibe-te um segundo,
                                                    Corre até lá ao fundo.

                                                    Saltita p'ro lado,
                                                    Toca no tecto!
                                                    Voa mais alto,
                                                    Chega mais perto!
                                                    Avança e pára
                                                    No tempo certo.

                                                    Agora dança,
                                                    Suave,
                                                    Com plumas nos pés...
                                                    Para a frente,
                                                    Para trás,
                                                    Sustém outra vez...
                                                    Agora dança
                                                    A valsa,
                                                    Mais dois saltos ou três...
                                                    Balança,
                                                    Oferece,
                                                    Suave outra vez...

                                                    Um sorriso final,
                                                    Um salto,
                                                    Um tombar...
                                                    Uma pausa que te prende...
                                                    Já podes respirar...

                                                      terça-feira, fevereiro 03, 2009

                                                      Pedaço de mar


                                                        Passaste...
                                                        Deixaste
                                                        Pegadas frescas no areal.
                                                        Pegadas de areia
                                                        E de sal
                                                        Levadas p'lo vendaval...

                                                        Passaste...
                                                        Numa corrida fugaz...
                                                        Desapareceste
                                                        E foste atrás
                                                        De um paraíso,
                                                        Talvez
                                                        De paz...

                                                        Passaste,
                                                        Atirando ao mar
                                                        Lágrimas
                                                        Que eu fui chorar.
                                                        Agora o oceano
                                                        enrola ao luar
                                                        Ondulações do meu pesar...

                                                        Passaste um dia...
                                                        Na praia ficou
                                                        A melodia
                                                        Que acompanhou.
                                                        Dentro de um búzio
                                                        Ouvi essa voz:
                                                        Pedaço de mar
                                                        Guardado p'ra nós...


                                                        Mais outro... As pegadas que deixaste na minha memória...

                                                        terça-feira, janeiro 27, 2009

                                                        Retrospectiva


                                                          Troquei a juventude por um sonho,
                                                          Um sonho que não era assim...
                                                          Olhos encovados de cansaço
                                                          Sonhando que o sonho
                                                          Tenha um fim.

                                                          Sonhei, sonhei muito em criança...
                                                          Sonhei com Sol e com jasmim,
                                                          As flores de tantas cores que no fundo
                                                          Seriam reflexos de mim...

                                                          Sonhos de vida e de certeza,
                                                          Em dias de alegria e de ternura.
                                                          Tantos sonhos e tantas Primaveras
                                                          De doce e inocente loucura...

                                                          Fantasias de uma vida futura,
                                                          Sonhos de felicidade certa...
                                                          Alegres devaneios que senti.
                                                          Levanto o olhar rumo ao céu...
                                                          Porque não sonhei morar ali?

                                                          E agora, enrugada e fraca,
                                                          Tremem-me as palavras que escrevi...
                                                          Troquei a juventude por um sonho...
                                                          Aquele sonho que não vivi.

                                                          sábado, janeiro 03, 2009

                                                          Suicídio Existencial


                                                            Um único momento de solidão... Não há medo, não há perigo, não há vergonha... Não há ruído, não há movimento... Ela aconchega-se nesse segundo de existência isolada...

                                                            Acompanha-a um pouco de silêncio... Sem pautas, sem compassos, sem semibreves ou colcheias... Uma grande sinfonia composta de pausas intercaladas com pequenos nadas...Uma melodia feita de vazio...

                                                            Cobre-a um véu de sopros... Sem ninguém a observar, o seu corpo confunde-se com a atmosfera... Ela cobre-se de transparência fina, e não se esconde...

                                                            Tudo isto e tudo nada... Sózinha a sua mente divaga... Pensa que existe paz numa alma que ninguém vê, ninguém toca, ninguém sente...

                                                            Por fim, esqueceu-se de si própria... O silêncio tomou a sua voz como sendo parte dele. O ar engoliu a sua silhueta, incorporou-a na sua invisibilidade. Os espíritos apagaram-lhe a presença...

                                                            Ela tinha medo, apenas o escondia... Corria perigo, mas não sabia... A sua vergonha, só ela conhecia... Mais ninguém viu que desaparecia...