domingo, novembro 19, 2006

Chuva fora de estação

Começou com amor e saudade,
Conversas distantes demoradas,
Projectos de felicidade...
Problemas invísiveis ao olhar,
Suspiros saudosos ao luar,
Beijos enviados por estrelas...
E a distância cansada da viagem
Ficou a repousar noutra paragem
E as saudades esqueceram-se de mim.
Bebi água num oásis de paixão
Miragem num deserto sem fim.
E deixei-me embalar na ilusão
De praias quentes e passeios em vão.
Busquei conforto em perguntas inocentes
Obtive respostas ausentes
E descobri verdades incompletas.
No olhar, tristezas indiscretas
Denunciavam as ruínas de uma alma
Que vivia a medo e desconhecia a calma.
Até o céu chorava aquela dor
E o vento soprava com fervor
Para esfriar vestígios de paixão...

E afinal tudo isto
Foi apenas um Verão...

terça-feira, outubro 17, 2006

Um dia ela olhou e disse: "Mas que blog mais deprimente!"
E assim escreveu!...





(às vezes as histórias de um dia resumem-se apenas ao enterro de velhos fantasmas)

sábado, setembro 30, 2006

A boneca de gelo

Era uma vez uma menina suficientemente crescida para fazer as suas próprias decisões, mas demasiado nova para saber o que queria. Vivia para sorrir às alegrias e chorar os contratempos, como se todos os acontecimentos da sua vida necessitassem de ser vividos de uma maneira igualmente intensa.
Mas esta intensidade começava a afectá-la... Às vezes custava-lhe sorrir, não sentindo energia suficiente para ordenar aos seus músculos uma pequena contracção. Noutras alturas, eram as lágrimas que se escondiam, achando-se boas demais para serem derramadas por alguma "desgraçazeca" qualquer.
E pouco a pouco, a menina deixou de sorrir e deixou de chorar. Passou a viver sem deixar uma emoção atravessar-lhe o rosto ameno, desconcertantemente infeliz apesar de nunca verter uma única lágrima.
O tempo foi avançando, e a menina escolheu os caminhos que teria de percorrer para o resto da sua vida sem pedir opinião aos sentimentos. Escolheu caminhos de gelo, onde o seu corpo foi esculpido pelo vento e o frio. Caminhou pesadamente sobre glaciares e lagos congelados, até que um dia viu a sua imagem reflectida num pedaço mais cristalino de gelo. E ali ficou olhando a sua imagem desgraçada. Teria chorado, mas pequenas estalactites nasceram nos cantos dos seus olhos. Tentou fugir, mas fortes estalagmites prenderam-lhe os pés obrigando-a a ver a sua imagem gélida para sempre.
A partir desse momento apenas desejou poder voltar a chorar amarguradamente as suas dores. Desejou gritar pelas emoções abandonadas e correr para os braços da sua vida anterior. Mas estava presa àquele lugar, àquele corpo e àquela data, que lhe lembravam dolorosamente que não podia regressar ao passado.
Quando se convenceu disso, virou os olhos para o céu, e pediu ao Sol que derretesse o seu presente e lhe desse um futuro de liberdade... E todos os dias olhava-o fixamente na esperança de nele encontrar uma faísca de esperança. Até que uma manhã, acordou cega. Tentou olhar em volta, à procura do gelo que a rodeava, mas não viu nada. Procurou o seu reflexo disforme, mas este parecia ter-se apagado.
No entanto, estes foram os dias mais felizes da sua vida. Os dias em que fechou os olhos e imaginou o seu futuro com um sorriso nos lábios.

quarta-feira, setembro 06, 2006

A primeira história

Ainda me falta começar a narração. Falta escolher a localização dos sonhos que ainda estão por escrever. Falta colorir as faces das personagens que me batem à porta implorando por um papel na minha vida. Falta-me pensar no dia, no passado ou no futuro em que a minha vida se tornou numa história. E ainda falta a intriga...
E o tempo passa com estas opções por fazer. São mais pessoas que se cruzam comigo, sugerindo que perpetue os seus gestos nas minhas palavras. Outros dias para transformar em contos inacabados, e outros locais para ornar de adjectivos. Mais pensamentos e ideias relativamente promissoras. Mas ainda falta muita coisa...
Falto eu. Falta a narradora presente. Já que tantas vezes me ausento deste mundo, faz falta a minha presença pelo menos nas minhas histórias. Falta largar as músicas que me embalam o corpo e começar a deixar os dedos dançar sózinhos sobre um teclado que às vezes serve de caneta. Falta esquecer o cansaço nas noites em que os versos me pesam nos olhos. Ainda falta arrumar a bagunça da minha alma, reflectida no chão do meu quarto.

Pronto, agora só falta mesmo escrever uma história a sério.

sábado, agosto 26, 2006

Amor próprio

Perante a evidência de outra noite de insónia ela decidiu ficar acordada. Refugiou-se numa sala vazia e silenciosa, escutando a sua própria respiração. "Então é este o som..." murmurou ela, enquanto constatava o óbvio: já há muito que não parava para se ouvir. Já não se lembrava do som da sua respiração, nem da última vez em que a tinha escutado com atenção.
E por momentos congelou, aterrada com a possibilidade de se estar a esquecer de ela própria. Escutou novamente a sua respiração, agora um pouco mais acelerada, procurando gravar cada ruído na sua memória auditiva. Aos tropeções regressou ao quarto, desapertando o cinto e despindo a blusa pelo caminho. Atirou a roupa para cima da cama e pôs-se em frente ao seu espelho desencantado, onde podia ver cada defeito do seu corpo. Estudou as suas curvas, rodando sobre si mesma, para que nenhuma parte lhe escapasse. Aproximou-se e contou as borbulhas que se esqueceram da idade dela, os vasos que lhe raiavam os olhos e os mais pequenos pêlos indesejados, numa observação minuciosa do seu rosto. Penteou o cabelo com os dedos e voltou a afastar-se do espelho, sem sair da frente dele.
Desta vez, levou as mãos à cara, para sentir cada uma das irregularidades que detectara. Imediatamente estas desceram-lhe para o pescoço, e deste para o peito. Olhou o seu reflexo nos olhos e deu por ela a delinear os seus traços mais femininos... Com vergonha, afastou os braços do corpo, sentindo-se a entrar em propriedade alheia.
Só passado alguns demorados instantes têve coragem de aproximar o pulso ao nariz, procurando o perfume que pusera de manhã, sem pensar. E, como se aquele aroma a tivesse atordoado, deixou-se cair na cama, para consumar o inesperado e desesperado amor que um espelho mágico lhe indicara.
"Alguém tem de gostar de mim."... E assim dormiu um dos sonos mais tranquilos da sua vida.

sexta-feira, agosto 25, 2006

De volta ao activo

Já era tarde, ela estava cansada. Ela já estava na cama, debaixo dos lençóis, conversando timidamente com o silêncio. As suas pálpebras tremiam, indecisas; devia ela deixar-se dormir ou continuar a muda conversa?
Mas havia demasiadas ideias na sua cabeça... Novelas de hoje, histórias de ontem e preocupações de amanhã. E ela debatia-se com a indecisão frustrante entre um romance, um conto ou um diário. Ou todos... Porque os seus pensamentos estavam tão misturados que se tornava quase impossível começar uma coisa só.
E entretanto, ela decidiu que nessa noite o sono e o cansaço sairiam vitoriosos. Ela travara outras duras batalhas recentemente e embora esta guerra de decisões fosse importante para ela, não estava interessada em martirizar-se mais.

Até uma escritora indecisa merece descansar...