sábado, setembro 30, 2006

A boneca de gelo

Era uma vez uma menina suficientemente crescida para fazer as suas próprias decisões, mas demasiado nova para saber o que queria. Vivia para sorrir às alegrias e chorar os contratempos, como se todos os acontecimentos da sua vida necessitassem de ser vividos de uma maneira igualmente intensa.
Mas esta intensidade começava a afectá-la... Às vezes custava-lhe sorrir, não sentindo energia suficiente para ordenar aos seus músculos uma pequena contracção. Noutras alturas, eram as lágrimas que se escondiam, achando-se boas demais para serem derramadas por alguma "desgraçazeca" qualquer.
E pouco a pouco, a menina deixou de sorrir e deixou de chorar. Passou a viver sem deixar uma emoção atravessar-lhe o rosto ameno, desconcertantemente infeliz apesar de nunca verter uma única lágrima.
O tempo foi avançando, e a menina escolheu os caminhos que teria de percorrer para o resto da sua vida sem pedir opinião aos sentimentos. Escolheu caminhos de gelo, onde o seu corpo foi esculpido pelo vento e o frio. Caminhou pesadamente sobre glaciares e lagos congelados, até que um dia viu a sua imagem reflectida num pedaço mais cristalino de gelo. E ali ficou olhando a sua imagem desgraçada. Teria chorado, mas pequenas estalactites nasceram nos cantos dos seus olhos. Tentou fugir, mas fortes estalagmites prenderam-lhe os pés obrigando-a a ver a sua imagem gélida para sempre.
A partir desse momento apenas desejou poder voltar a chorar amarguradamente as suas dores. Desejou gritar pelas emoções abandonadas e correr para os braços da sua vida anterior. Mas estava presa àquele lugar, àquele corpo e àquela data, que lhe lembravam dolorosamente que não podia regressar ao passado.
Quando se convenceu disso, virou os olhos para o céu, e pediu ao Sol que derretesse o seu presente e lhe desse um futuro de liberdade... E todos os dias olhava-o fixamente na esperança de nele encontrar uma faísca de esperança. Até que uma manhã, acordou cega. Tentou olhar em volta, à procura do gelo que a rodeava, mas não viu nada. Procurou o seu reflexo disforme, mas este parecia ter-se apagado.
No entanto, estes foram os dias mais felizes da sua vida. Os dias em que fechou os olhos e imaginou o seu futuro com um sorriso nos lábios.

quarta-feira, setembro 06, 2006

A primeira história

Ainda me falta começar a narração. Falta escolher a localização dos sonhos que ainda estão por escrever. Falta colorir as faces das personagens que me batem à porta implorando por um papel na minha vida. Falta-me pensar no dia, no passado ou no futuro em que a minha vida se tornou numa história. E ainda falta a intriga...
E o tempo passa com estas opções por fazer. São mais pessoas que se cruzam comigo, sugerindo que perpetue os seus gestos nas minhas palavras. Outros dias para transformar em contos inacabados, e outros locais para ornar de adjectivos. Mais pensamentos e ideias relativamente promissoras. Mas ainda falta muita coisa...
Falto eu. Falta a narradora presente. Já que tantas vezes me ausento deste mundo, faz falta a minha presença pelo menos nas minhas histórias. Falta largar as músicas que me embalam o corpo e começar a deixar os dedos dançar sózinhos sobre um teclado que às vezes serve de caneta. Falta esquecer o cansaço nas noites em que os versos me pesam nos olhos. Ainda falta arrumar a bagunça da minha alma, reflectida no chão do meu quarto.

Pronto, agora só falta mesmo escrever uma história a sério.